No caminho de Fès a Marrakech, vivenciando a festa religiosa no Marrocos
No último dia em Fès, arrumamos nossa bagagem e saímos cedinho rumo à tão esperada Marrakech. Esse era um dia muito especial no Marrocos, e acredito que em todos os países muçulmanos também, afinal era a festa religiosa conhecida como O Sacrifício de Abraão ou a Festa do Cordeiro, fazendo referência à passagem bílbica onde Deus pede para Abraão sacrificar seu filho em honra a Ele, porém, na hora do sacrifício, um anjo é enviado e entrega a Abraão um cordeiro para ser sacrificado no lugar de seu filho Isaque (Gênesis, 22:1-19).
Desde nosso primeiro dia no Marrocos, em Casablanca, que víamos pessoas carregando cordeiros em carros, camionetes, carrinhos de mão e até mesmo nos próprios ombros. A mesma cena se repetia várias e várias vezes em Rabat, Meknès e Fès. Isso obviamente despertou minha curiosidade e foi então que descobri, que toda aquela movimentação era na verdade os preparativos para a festa religiosa, assim como as compras de Natal para nós.
A medida em que se aproxima a data, o comércio de cordeiros fica ainda mais intenso. A movimentação dentro da medina aumenta ainda mais, com pessoas agitadas comprando todos os preparativos para a grande festa.
No dia em si, as pessoas parecem mais calmas, mais tranquilas, mais centradas na festividade. Logo cedo, elas tomam um café da manhã bem especial e vão para as mesquitas participarem do culto. Os homens se dão quatro beijos para desejar boas festas. As crianças ganham roupas e sapatos novos, doces, presentes e dinheiro. Nesse ponto, a festa religiosa é parecida com o Natal com relação à importância da data e à troca de presentes. No entanto, as similaridades param por ai.
Quando as pessoas voltam da celebração na mesquita, elas dão início ao sacrifício do cordeiro e ai entra a parte que, para nós ocidentais, é difícil de compreender. As famílias vão então para a frente de suas casas e lá sacrificam o animal. Depois disso o penduram de cabeça para baixo para que todo o sangue escorra. O significado da festa está justamente no sacrifício do cordeiro, por isso não se pode apenas comprar a carne, deve-se comprar o cordeiro vivo e sacrificá-lo na frente da casa. Isso para reviver o sacrifício de Abraão, patriarca de todos os muçulmanos, que iria ceder seu filho a Deus. Sendo assim, as pessoas fazem esse ritual para atrair as bençãos de Deus para sua família e descendentes, uma vez que eles próprios são descendentes de Abraão. Assim, eles mantém vivo o compromisso de Abraão e sua descendência para com Deus.
Eu, particularmente, apesar de respeitar a fé e crença de cada um e de entender o forte significado religioso, não me senti bem com a questão do sacrifício. Quem me conhece, sabe como sou apegada a bichos e por isso decidi não olhar para nenhuma casa onde estivesse acontecendo o sacrifício. Essa atitude me rendeu muitas horas de viagem sem olhar para a estrada, pois por todos os lados haviam famílias comemorando a data.
Mesmo para eles é difícil encarar o ato de matar o cordeiro, principalmente para as crianças. Esse é o motivo pelo qual elas recebem mimos como presentes e doces, afinal os pequenos se apegam ao cordeiro nos dias em que precedem a comemoração e acabam sofrendo quando ele é morto. Alguns adultos também ficam sentidos. Nosso guia me contou que ele ainda lembra de quando era criança e via o cordeiro sendo morto. Ele também mencionou que, mesmo agora sendo adulto, não tem coragem para sacrificar o cordeiro. Quando isso ocorre, um vizinho é chamado para executar a tarefa. Isso não deixa de ser um bonito ato de solidariedade, esquecendo de que se trata do ato de matar um bicho.
Outro ato de solidariedade religiosa é o fato de que famílias ricas costumam comprar dois 2 cordeiros, um para elas e outro para doarem a uma família pobre que não tem condições de adquirirem um. Dessa forma ninguém fica sem comemorar o dia religioso.
No dia da festa mesmo não se come a carne, só no dia seguinte. Esse também é um dos motivos pelo qual o café da manhã é bem reforçado. No dia festivo, apenas o sangue é derramado lembrando o ato de Abraão, nos demais dias que se come a carne e depois aproveita até mesmo o couro do carneiro.
A Festa do Cordeiro não tem data fixa para ocorrer, assim como nossa Páscoa. Ela corresponde ao final do ano muçulmano. Nesse caso, o ano que começava para eles era o 1432, enquanto que para nós era novembro de 2010. O ano 1 islâmico corresponde ao nosso ano 622. Na verdade, eles seguem o calendário lunar, ao contrário de nós que seguimos o calendário solar ou gregoriano. No Islam, o ano começa com a fuga de Maomé de Meca para Medina (Hegira). O calendário possui 12 meses como o nosso, porém são mais curtos, com 30 ou 29 dias, o que dá 355 ou 354 dias, 11 dias a menos que o calendário gregoriano.
Vivenciar essa festa religiosa foi bom pelo fato de poder conhecer mais da cultura e fé do marroquino, porém para ser sincera foi um momento bem difícil para mim, por amar aos bichos (embora eu coma carne) e também pelo forte sentido religioso, envolvendo filhos e sacrifício. Mas de tudo, ou quase tudo, tiramos uma boa experiência e lição de vida.
À tarde, as casas, ruas e estradas ficaram silenciosas e aparentemente vazias. No final do dia, somente as viúvas dos carneiros permaneciam nos campos.